RAIVA, APRENDA A USAR

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Adam Blatner, PHD. Médico psiquiatra Americano, atualmente aposentado, desenvolveu sua prática clínica e psicodramática em Palo Alto na Califórnia . Atualmente no Texas. Autor de vários livros:Acting-In”;”Foundations of Psychodrama”; The Art of Play: Helping adults reclaim imagination and spontaneity””. No Brasil a Editora Ágora publicou em 1996 “Uma visão Global do Psicodrama”. Possui um site na internet com vários artigos interessantes, dentre os quais este aqui publicado. http://www.blatner.com

(Traduzido  por Rosa Cukier em 26 de junho de 2002)

A raiva é uma emoção natural e assinala a necessidade de mudança no meio circundante. No entanto, é possível e em geral desejável expressar a raiva de forma moderada, e quem aprende a fazê-lo mostra maturidade.

A representação de papéis é um recurso excelente para adquirir essa aptidão, pois cada grau de raiva implica um conjunto diferente não só de comportamentos, mas também de expectativas. Faz sentido, então, analisar a diversidade de papéis que se adaptam aos diferentes graus de ira.

Sete graus de raiva

 

Raiva não manifestada

O primeiro grau, que ganhou o número zero (“0”), diz respeito a sentir raiva, consciente ou inconscientemente, mas não manifestá-la. Às vezes o indivíduo sabe que está irritado. Ou talvez até muito irado, mas não consegue admitir isso nem mesmo para um amigo e quase sempre nem para si mesmo. Há um número grande de pessoas que aprenderam ainda na infância a reprimir a raiva, de modo que nem sabem que a sentem. Elas precisam reaprender a se tornar sensíveis aos indícios do corpo e aos sentimentos sutis.

Quando não é expressada verbalmente a raiva costuma procurar outras maneiras de se manifestar, geralmente na forma de sintomas psicossomáticos, expressando-se inconscientemente por agressividade passiva, transferência para outros etc.

Agora, convenhamos: em muitas ocasiões a manifestação direta de raiva é politicamente desaconselhável. Mas pelo menos o indivíduo pode perceber com clareza os seus sentimentos e decidir como lidar com eles, ou conversar a respeito com um bom amigo. Isso é válido como forma de expressão sadia.

Sinais sutis

O segundo grau, com o número um meio (“0,5”), retrata um papel diferente. Aí a pessoa expressa a raiva, mas de um modo claramente ineficaz, desanimado e indireto. A expectativa nesse papel é de que as outras pessoas percebam – ou “deveriam” perceber – essas pistas sutis e mudem de atitude, ou entendam o recado de alguma forma.

Na verdade, em algumas subculturas, todos aprendem essas mensagens sutis e parecem ser capazes de fazer acertos com os outros sem nem precisar ser explícitos. A intenção é, em parte, não incomodar o outro. O problema é que, nesta época de mistura de culturas, muito provavelmente encontraremos pessoas que não aprenderam a ser sensíveis às mensagens sutis. Além disso, há pessoas com um temperamento que é, digamos, um pouco mais impenetrável. Elas têm grande dificuldade de perceber manifestações indiretas. Não há por que culpá-las – elas não podem fazer muito para corrigir o problema. O imprescindível é aprender a se comunicar com mais clareza, ser mais direto, mas sem reprovação – o grau acima, a seguir.

Deixando clara a raiva

O grau um (“1”) é o terceiro estágio, mas ganhou o valor 1 por ser um recado claro. É um papel que muitos não aprenderam: apenas dizer o que querem sem culpar ninguém. Chamo-o de papel porque exige certa habilidade para ser representado. A maioria costuma acrescentar uma ponta de raiva, uma carranca ou, na outra direção, um aborrecimento. Quer dizer, tendem a adotar um grau 3 ou um grau 0,5.

O ponto importante que se deve reconhecer é que as pessoas civilizadas em geral reagem conforme o esperado a uma afirmação de grau um. Caso não estejam prestando atenção ou estejam distraídas ou absortas no que faziam, basta repetir a afirmação de grau um.

Ficar ainda mais irado quando a outra pessoa está com boas intenções, mas não notou o seu incômodo, só vai magoá-la. Isso transmite o seu juízo de que ela não é sensata nem bem-intencionada. Esse detalhe é muito importante!

Os graus intermediários

 

Grau dois (“2”): digamos agora que a outra pessoa não reagiu a um recado direto, mesmo depois de repetido. Então você aumenta um pouco o tom de voz e seu rosto passa de um sorriso gentil para uma expressão um pouco mais dura – mas, interessante notar, não uma cara fechada. Você repete a sua afirmação – em geral na forma de pedido claro ou advertência.

Uma vez mais, a maioria dos que não perceberam a sua irritação no grau 1, atenderá a um grau 2. E é o que você deve esperar que façam. Em geral, as pessoas querem ser cooperativas e realmente se importam com os seus sentimentos, desde que consigam entender claramente o recado de que você está incomodado.

Dominar habilidade

Aprender a dominar esse papel é a habilidade mais importante: o ponto central, aqui, é evitar uma reprovação excessiva. É melhor não insinuar que você ficou guardando a raiva, ou que é tarde demais para fazer o que você pediu, ou que o outro te ofendeu e você nunca o perdoará nem voltará a respeitá-lo. Mais exatamente, o papel do grau 2 é comunicar que, se a pessoa parar de fazer o que incomoda ou mudar um comportamento, tudo ficará bem. Permanece uma tendência oculta de supor que a outra pessoa é legal, atenciosa, mas talvez não tenha entendido o recado anterior de que aquilo é importante para você.

Para desempenhar bem o grau 2, você precisa saber, por um lado, que pode recuar tranquilamente para o grau 1 ou adotar um comportamento brando. E por outro lado, que pode também passar ao grau seguinte, se for necessário.

Ficar bravo

O grau três (“3”) é outro papel importante: agora você está bravo. Não está muito bravo (4) nem descontrolado (5), mas está claramente irritado. Uma nova dimensão entra em pauta: não é só que você está incomodado com o comportamento, mas que a irritação se compõe de uma ponta de mágoa e indignação porque a pessoa parece não se importar com o fato de você estar incomodado! Entra em cena, então, o problema do relacionamento.

Este papel pode usar apropriadamente uma cara feia, bem como um tom de voz sério, intenso e , até, uma afirmação como: “Agora fiquei zangado”. Começe também a insinuar uma ameaça, a mensagem simples de que, se o outro não mudar de atitude, você vai reagir tomando alguma medida. É necessária uma boa dose de maturidade e discernimento para desempenhar este papel, porque se deve medir cada resposta para que seja coerente com o tipo de relacionamento, a posição e a consciência do ofensor, o contexto etc.

Limites

O grau quatro (“4”) (o sexto grau mencionado) é o próximo passo da escala. Ele é usado principalmente com crianças que estão “testando os limites”. Elas querem ver o que você, como pai ou professor, vai fazer em razão da sua raiva. As crianças não sabem o que significa um pai irado e precisam descobrir o que é sem se traumatizarem.

No grau 4, sua voz está ainda mais alta. Você se aproxima um pouco do rosto da criança, sua expressão facial é de fúria – para lá de séria – e, você pode até gritar. Com crianças mais novas, você pode erguê-las no ar – não as sacuda – e pode coloca-las, com firmeza , num sofá ou lugar macio. O importante é fazê-las sentir o seu poder. Elas talvez tenham um surto de ansiedade. No entanto, aí não se impõe nenhuma dor física, nem se dizem palavras que humilhem, insultem ou magoem.

As crianças precisam adquirir a capacidade de sentir uma quantidade pequena – digamos, em torno de 8% – de medo, culpa e vergonha. Não 20% ou mais – o limite para o trauma. Mas uma quantidade pequena. Isso as torna civilizadas, forma nelas uma consciência sadia. Com menos do que isso, elas ficam mimadas, arrogantes e um pouco antissociais. Portanto, as crianças precisam sentir as consequências da sua experimentação natural com os limites sociais – precisam sentir-se amedrontadas com o que fizeram e com o resultado.

Escalada gradativa

Algumas crianças precisam passar por esse processo de escalada gradativa – não muito gradativa, mas um passo a cada advertência – talvez várias vezes por ano. Com crianças de temperamento mais sensível, pode ser suficiente uma reação menos intensa para que elas testem menos, ao passo que, com as mais teimosas, você pode ir até o grau 4.

É importante os pais saberem que não há problema em chegar ao 3 ou 4 – isso não os faz parecer nem ruins nem terríveis demais para os filhos. Se estes foram mimados ou tratados com muita brutalidade, terão dificuldade em conhecer esses graus intermediários. Aprender a lidar com a raiva será um componente importante do treinamento de papéis na terapia deles.

Com relação aos adultos, a melhor atitude no grau 4 é sair de perto, deixar para lá, acalmar-se. Depois, trabalha-se nos graus 2 e 3, nos moldes de uma negociação. Você pergunta: “Espere aí, eu preciso saber: você se importa com o que eu sinto nessa questão?” Você se reporta diretamente ao problema no relacionamento – seja qual for o comportamento que tenha dado início a tudo.

Perdendo a paciência

 

O sétimo grau é o cinco (“5”) e diz respeito ao papel da raiva. Você talvez já esteja gritando, e a violência às vezes é uma reação apropriada caso seja necessário se defender fisicamente. Foram ministrados cursos para mulheres a fim de ensiná-las a reagir com um contra-ataque do grau 5 se forem agredidas. Nesta ocasião precisam “usar de todas as armas”.

No entanto, um comportamento civilizado, em família ou em qualquer situação em que você espere ser capaz de preservar o relacionamento com a outra pessoa, o grau 5 é inaceitável. Ceder à raiva é “perder as estribeiras”.

O ponto principal de todo esse exercício é ajudar as pessoas a não mais perderem a paciência. A nunca chegarem a um 5 em ambientes civilizados. Se você sabe que consegue desempenhar os papéis intermediários da raiva e adquire a confiança de que eles funcionam para acertar as situações quando necessário, então você não precisa se descontrolar.

A raiva implica bater, atirar objetos, ameaçar as pessoas com violência e usar de violência verbal. Ou seja, dizer coisas que realmente magoam. Eticamente, é ruim. Digo isso porque existem pessoas que ainda se justificam a respeito do conceito de raiva – que, “se você me deixar com raiva, fico com raiva de verdade”. Esses “raivosos” são egocêntricos e imaturos.

Sempre no limite

Há pessoas que talvez nunca tenham conhecido a raiva mediana, , gente que foi criada em situações nas quais a raiva era ou 0 ou 5 – nenhuma intermediária. A televisão contribui muito pouco para a formação dos indivíduos. Nela, a raiva se manifesta por um comportamento intimidador e ameaçador, violência flagrante e, quando verbal, na forma de sarcasmo, afronta feia, resposta irritada. Você nunca ouve dizerem: “Sabe, isso está me incomodando, mas eu gostaria também de ver pelo seu lado”.

Há também outro tipo de pessoa que perde a paciência e depois se sente muito mal – são aquelas pessoas que não aprenderam a passar de um 0 ou 0,5 e sentir-se bem. Qualquer coisa mais direta parece “além da conta”, então elas tendem a represar até irromper num comportamento que é mesmo além da conta, o qual comprova para elas mesmas que qualquer tipo de raiva é opressivo. Na verdade, porém, essas pessoas não conhecem os graus intermediários.

É importante ajudar as pessoas a não se sentirem bem quando perdem a paciência. Sempre recorro à analogia de perder o controle dos intestinos – é o que ocorre com criancinhas. Crescer significa aprender a ter controle tanto da raiva quanto das fezes. Mas eu me apresso em observar que também é importante fazer os intestinos funcionarem. É essencial para a saúde e a vida! Mas o que faz enorme diferença é onde eles funcionam e como funcionam. A ênfase é na ideia de que a alternativa não é apenas reprimir a raiva. Mas sim o fato de que há modos satisfatórios e eficazes de exprimi-la – os graus intermediários. (Muita gente, infelizmente, nunca soube que existem graus intermediários ou que é certo usá-los.)

Avançando aos poucos

 

O importante é não pular os graus. Não ir do 0,5 para o 3, nem mesmo do 1 para o 3, muito menos do 2 para o 4. A questão aí é que você quer sempre transmitir à outra pessoa que espera dela o melhor. Espera que, se ela perceba claramente que você está incomodado, se disponha a se reconciliar com você – porque, na verdade, geralmente é o que acontece.

Por outro lado, você não quer parecer um fraco e ficar repetindo que está chateado e quer que as coisas mudem. Se a outra pessoa não lhe der ouvidos, passe para o grau seguinte. Ou então o meio grau seguinte. Mas continue subindo; senão, será contra-produtivo e te prejudicará.. Essa abordagem da raiva é uma estratégia calculada para tratar do seu desconforto de modo que você não acabe nem reprimindo a irritação, nem estourando.

Com prática e maturidade, você verá que às vezes é bom equilibrar os comportamentos adquiridos que se encontram em meio aos graus intermediários. Faz parte do aprendizado de habilidades sociais mais requintadas. Também é bom adquirir aptidões para solucionar problemas e conflitos. Por exemplo: aprender a inverter papéis para obter empatia, a prender a se justificar, a recuar e dar espaço à outra pessoa, etc. Cada um desses itens poderia constituir outro capítulo.

Vale a pena repetir, entretanto, que no grau 3 ou 4 você deve avaliar as suas reações para que sejam coerentes com a realidade da situação. Não existe uma fórmula infalível para o modo de se comportar, para o modo de sentir raiva. O conhecimento dos vários graus e um pouco de prática com eles são ótimos recursos para o seu repertório de papéis.

Resumo

 

Você pode aprender a usar a raiva construtivamente praticando uma versão do treinamento de papéis. Pensando nos diferentes graus de raiva como papéis diferentes que você associa e exercita a fim de conseguir a solução desejada para uma situação incômoda.

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